Entre uísques, fumaça e narguilés: o samba-canção e o funk de tabacaria
O que a ascensão da trilha sonora dos lounges paulistanos tem a ver com o samba "dor-de-cotovelo" das boates cariocas?
Em “A noite do meu bem", Ruy Castro narra o nascimento de um gênero (o samba-canção) e do seu habitat natural: as boates cariocas das décadas de 40, 50 e 60 do século passado. As boates demandavam um novo tipo de trilha sonora, algo mais intimista que as grandiosas orquestas que dominavam os palcos dos casinos e teatros da época, tocando de tudo: de música francesa até os sambas que faziam sucesso nas rádios. Para se adaptar a meia luz, uísques e charutos dos inferninhos de Copacabana, o samba desacelerou. Mais de meio século depois, um outro ritmo popular segue as pegadas do samba-canção: para se acomodar a penumbra e o ambiente esfumaçado dos lounges e tabacarias, o funk de São Paulo também precisou pisar no freio. Foi assim que nasceu a vertente mais paulistana do ritmo que domina as periferias do Brasil: o funk de tabacaria.
Enquanto no Rio de Janeiro, as linhas entre o funk e o rap ficam cada vez mais borradas – a gravadora Mainstreet, por exemplo, é a casa do funkeiro Poze do Rodo e do rapper Borges – em São Paulo, as fronteiras ainda são muito claras. Longe de qualquer rótulo pejorativo, o funk de tabacaria é a plataforma ideal para os MC's paulistanos – que já tem uma inclinação natural para um lirismo mais próximo do rap – brincarem com ideias e temas. É esse subgênero que abriga os melhores rimadores da cena, que se alternam no line up dos sets, o formato por excelência dessa vertente. Enquanto o rap no seu formato mais tradicional vai perdendo terreno na cidade da garoa – os Emicida's, Criolo's e Rashid's definitivamente ficaram no passado – figurinhas carimbadas dos sets – Hariel, Kelvinho, Kadu, Salvador da Rima, IG – carregam o estandarte lírico paulistano. Os grandes cronistas da periferia paulistana hoje são a trilha sonora das tabacarias de quebrada.
Pela duração, um set pode ser cansativo – e muitas vezes, eles realmente o são – mas com a combinação certa de MC's, o resultado pode ser sublime. Como disse Aristóteles, "o todo é maior que a soma de suas partes" e a máxima vale pra um bom set: diferente de um cypher de rap, um bom set não é uma competição aberta para ver quem tem a melhor punchline. Mais sofisticado do que o funk de baile, a trilha sonora das tabacarias requer um refino técnico e uma sofisticação que os sons pra festa dispensam. Apesar dos seus detratores, o funk de tabacaria – o termo é usado de forma pejorativa em algumas ocasiões – é essencial para o ecossistema do funk paulistano. Que as tabacarias, adegas e lounges tenham uma vida mais longa que as chiques boates cariocas.