Afinal, o que é um país? Segundo o historiador Benedict Anderson, uma nação é um comunidade imaginada, limitada e soberana. O que chamamos de “Brasil” não existe: é um fruto da nossa imaginação. Mas o que acontece quando essa comunidade imaginada entra em crise? A ausência de consenso acerca dos nossos símbolos nacionais está deixando o Brasil à beira de ataque de nervos. E como diria Gil do Vigor, o Brasil tá lascado.
No meu último texto aqui falei um pouco sobre a volta do Brasil para o lugar de colônia e fim do sonho do “país do futuro” — tudo isso sintetizado pela nossa Girl From Rio, Anitta. Se Anitta procura nos ecos da Bossa Nova uma imagem mais positiva e vendável do Rio de Janeiro (nosso cartão-postal por excelência), alicerceada no discurso liberal do empoderamento (“Hot girls where I'm from/We don't look like models”) para construir a imagem do seu Brasil feito para a exportação, o mercado interno se alimenta do saudosismo e do “nordeste” para construir a imagem do que é o “verdadeiro Brasil”.
Alceu Valença é um representante de respeito do que chamamos de MPB. Mas é inegável que parte do seu apelo hoje — da apresentação no BBB até um remix criminoso do Alok — passa por uma necessidade de autoafirmação de uma classe média que procura, por intermédio desse representante do “nordeste”, resgatar o que é o “Brasil”. O line-up de um dos maiores festivais brasileiros também revela esse anseio: o próprio Alceu Valença é uma das estrelas de um hipotético Coala 2021. Mas se o nosso querido Alceu Valença foi “sequestrado” pela classe média da Vila Madalena, não dá pra dizer o mesmo do Carlinhos Brown, que se prestou voluntariamente ao papel. O inventor da caxirola foi mais longe ainda e dedicou um som inteiro para a nova “namoradinha do Brasil”, Juliette.
Como levo meu trabalho muito a sério, ouvi a música inteira. “Juliette, Mon Amour” é um arremedo de canção, um amontoado de declarações (uma até em italiano!) para a nossa guerreira. Aqui a semântica tem muito mais a dizer : o lyric vídeo traz os mesmos elementos trabalhados a exaustão nas redes do “fenômeno” que conquistou o Brasil: os indefectíveis cactos e o chapéu de cangaceiro. Na verdade, toda a linguagem visual é a mesma das redes da nossa querida Ju, um token que agencia como ninguém a narrativa de representante do “nordeste” e do “Brasil real". Incomodada com um país arrasado pela Covid, pela pobreza e pela fome, a classe média procurou refúgio no “nordeste” idílico e asséptico dos cactos, embalado em “Anunciação”, construindo uma visão reconfortante para quem não quer encarar a realidade.
A arte que ilustra o texto é da talentosíssima Sueni Jardim (https://www.behance.net/suenijardim).
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